segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A nossa Hollywood

A boa fase da indústria nacional e hegemonia do Rio na produção de filmes no país têm despertado o interesse dos jovens pela carreira de cineasta

Tomás Rangel
A recém-chegada
Formada em publicidade no Maranhão, Isadora Dias Vieira mudou-se para o Rio com a intenção de virar diretora: “Fiquei impressionada como tem coisas acontecendo aqui”

Experiência internacional
Luiz Eduardo de Biaso nem se formou e já teve uma experiência internacional: “Trabalhei com uma equipe americana que rodou um clipe na cidade”

Todo mundo com algum interesse em cinema lembra aquela surrada frase que virou clichê, atribuída ao cineasta Glauber Rocha: “Uma ideia na cabeça e uma câmera na mão”. Ela parecia tão esquecida quanto ele, como que abandonada em meio a rolos de filmes antigos. Eis que, subitamente, o velho e gasto bordão começa a renascer das latas empoeiradas, graças a um crescente número de jovens que estão redescobrindo os encantos de fazer um longa. Não é preciso muito esforço para encontrar os motivos que animam essa moçada. No último dia 15, Tropa de Elite 2 se tornou o filme mais visto no país nos últimos dez anos, superando sucessos globais como Avatar e A Era do Gelo 3. Nas últimas seis semanas, quase 10 milhões de pessoas já vibraram com as aventuras do coronel Nascimento, vivido por Wagner Moura. No mesmo feriado, outro recorde foi batido. Com a estreia de Muita Calma Nessa Hora, as produções brasileiras passaram a ocupar mais de 1 000 salas de exibição, o equivalente a 50% do circuito nacional. Raras vezes experimentou-se uma situação de tamanha popularidade e força comercial. A equação em torno do interesse dos rapazes e moças cariocas pela atividade fecha-se com outra estatística. Entre as dez maiores bilheterias nacionais de 2010, oito foram realizadas por empresas baseadas aqui, por profissionais que atuam na cidade. “Vivemos o melhor momento dos últimos vinte anos, e o Rio tem um peso fundamental nisso. Portanto, é natural que cada vez mais estudantes se sintam atraídos por esse tipo de trabalho”, diz Manoel Rangel, da Agência Nacional do Cinema (Ancine).



Números do cinema carioca

88 é a quantidade de produções estrangeiras realizadas na cidade (entre filmes, comerciais, clipes e programas de TV), de um total de 184 feitas no país em 2009

30 000 é o número de empregos criados pela indústria de audiovisual

1000 é o total de produtoras que têm base no estado

7 é a quantidade de produtoras cariocas entre as dez que mais lançam filmes no país

90% da arrecadação obtida com filmes nacionais em 2010 veio de produções feitas por empresas do Rio



Não existe um caminho claro ou predeterminado para entrar no mundo dos holofotes, câmeras e claquetes. O festejado José Padilha, de Tropa de Elite 1 e 2, formou-se em administração, trabalhou em bancos e largou o mercado financeiro para fazer filmes. Começou financiando documentários e aprendeu, na prática, como comandar uma produção. Fernando Meirelles, de Ensaio sobre a Cegueira e O Jardineiro Fiel, é arquiteto e, antes de estourar com Cidade de Deus, trilhou sólida carreira dirigindo comerciais para TV. Apesar de não ser a regra, fazer uma faculdade na área pode ajudar os interessados a enveredar por esse universo — principalmente se eles não têm a menor ideia de por onde começar. As faculdades voltadas para esse ramo, por sinal, vivem um ótimo momento. Há cinco anos, a PUC-Rio lançou seu curso de especialização, com uma turma de 29 alunos — hoje são 416. A Estácio de Sá, que desde 1999 oferece graduação na área, tinha uma média de trinta alunos por semestre. Agora, são setenta. A Universidade Federal Fluminense (UFF), a primeira a criar um curso no setor, em 1968, dispõe atualmente do dobro de vagas em comparação com a década de 80, admitindo cerca de 100 alunos a cada ano. E a procura não para de aumentar. “Nossas salas de aula lotadas são um claro sinal disso”, diz Walter Lima Jr., professor do curso da PUC e diretor de A Ostra e o Vento.

Gianne Carvalho
No caminho certo
Matheus Souza fez seu primeiro longa em 2008, com 20 anos. Elogiado, o filme ficou dois meses em cartaz. “Fazer filmes não é um sonho impossível”

Assim como acontece nos cursos de gastronomia, em que uma considerável parte dos recém-formados acha que sairá da escola direto para o posto de chef, é comum noviços no ramo cinematográfico acreditarem que estão aptos para gritar “Ação!” e “Corta!” nos sets de filmagem. No entanto, essa é uma posição destinada a poucos. “Ultrapassar o funil que separa quem comanda dos comandados é provavelmente o maior desafio para quem quer ser cineasta”, aponta Sérgio Sá Leitão, presidente da RioFilme, empresa municipal de fomento à área. Em geral, no início da carreira, um aspirante a diretor é quase como um contínuo de luxo no set de filmagens. “Tem de meter a mão na massa. Já desatolei carro, servi cafezinho e até corri atrás de boi”, conta Renan Brandão, 22 anos, formado na Estácio de Sá em 2008. Ele foi assistente de produção na refilmagem de A Hora e a Vez de Augusto Matraga, dirigido por Vinícius Coimbra e rodado em Minas Gerais, com lançamento previsto para 2011. Comunicativo, aproveitou a oportunidade para fazer contatos que lhe renderam uma indicação para estagiar em Tropa de Elite 2. Por causa disso, acompanhou gravações em favelas e no Palácio Guanabara. “Foi uma experiência incrível. Como às vezes a equipe se dividia em dois sets, tive a chance de trabalhar mesmo”, vibra o jovem. Hoje, com três amigos, tem uma pequena produtora, onde cria os próprios curtas-metragens — um privilégio em comparação às dificuldades que as gerações anteriores enfrentavam. Antes do advento das câmeras digitais, qualquer filmagem se tornava uma operação caríssima, pois só se usava película — uma lata com um rolo de 16 milímetros, suficiente para dez minutos, custa em torno de 250 reais.

Tomás Rangel
“Aspira” a diretor
Renan Brandão já precisou arranjar até um boi para uma produção, mas acabou recompensado ao estagiar em Tropa de Elite 2: “Foi incrível”

Se existe um marco que possa ser definido como o ponto de partida para a atual fase de opulência do cinema brasileiro é o longa Carlota Joaquina — Princesa do Brazil, dirigido pela atriz Carla Camurati, em 1995. Modesto, com um orçamento de 650 000 reais, atraiu 1,2 milhão de espectadores e faturou 6,3 milhões de reais com sua visão cáustica e distorcida da chegada da família real ao país. O filme foi a alavanca para uma série de sucessos, como Central do Brasil, Cidade de Deus e as comédias Se Eu Fosse Você 1 e 2. Em comum, todos traziam roteiros competentes filmados com técnica profissional — nada mais distante da improvisação e da câmera na mão de Glauber Rocha. Ajudaram, com isso, a eliminar a imagem de que as produções brasileiras eram herméticas ou toscas. “No meu tempo de menino, filme nacional ou era ruim ou era chato”, diz Matheus Souza, 22 anos, graduado na primeira turma da PUC, no ano passado. “Hoje é só olhar as filas na frente das bilheterias para perceber como a situação mudou. Isso dá um tremendo gás na gente.” Com um trabalho no currículo, feito ainda na universidade, Matheus é apontado como um dos talentos mais promissores da nova geração. Seu longa Apenas o Fim, estrelado pela atriz Erika Mader, sobrinha de Malu Mader, foi rodado entre os pilotis do câmpus da PUC em 2008. Lançado em circuito comercial no ano passado, ficou dois meses em cartaz e atraiu um público de 26 000 pessoas. Custou a ninharia de 8 000 reais — parte obtida da faculdade e parte na rifa de uma garrafa de uísque. “O meu caso mostra que é um sonho possível. Mas é preciso trabalhar muito para cavar um espaço”, avalia. No momento, Matheus dirige uma série para o canal pago Multishow e capta recursos para uma nova empreitada, que desta vez terá um orçamento de gente grande: mais de 1 milhão de reais.



Estreantes como Matheus começam a dar sua contribuição para a continuidade de uma longa história. A primeira exibição cinematográfica no país aconteceu em um salão da Rua do Ouvidor, no Centro, em 1896. Dois anos depois, as ruas da então capital federal e o Porto serviram de cenário para as primeiras filmagens. Décadas mais tarde, vieram as comédias musicais da Atlântida e da Cinédia. Não por acaso, a fita considerada a primeira do chamado cinema novo, em 1955, tinha o título Rio, 40 Graus. Com uma tradição dessas, não é de surpreender que hoje existam no estado cerca de 1 000 produtoras. É na cidade ainda que está o maior contingente de técnicos e artistas ligados ao audiovisual, cerca de 30 000 profissionais. Em um momento de efervescência, tornou-se natural que o mercado local funcione como um ímã para pessoas de outros estados. Formada em publicidade no Maranhão, Isadora Dias Vieira, 25 anos, fez cursos de especialização nos Estados Unidos e na Inglaterra. Incentivada por um de seus professores americanos da Tisch School of the Arts, da Universidade de Nova York, ela desembarcou no Rio no mês passado atrás do sonho. Uma semana depois, já participava das filmagens de uma série para TV dirigida por Arthur Fontes como terceira assistente de direção. “Fiquei impressionada ao ver como tem coisas acontecendo aqui”, diz Isadora, que enfrentou a resistência da família ao optar pela profissão. “Ainda assim é difícil convencer meus pais de que essa é uma profissão séria.” De fato, os recém-chegados costumam ganhar cerca de 1 000 reais por mês em períodos predeterminados, enquanto duram as filmagens. As perspectivas crescem com a experiência profissional e em produções maiores.

Tomás Rangel
No topo do mundo
André Rangel (à esq.) e Marcos Negrão abandonaram o emprego para fazer filmes. O mais recente mostra a vida em uma tribo do Himalaia

Com suas paisagens espetaculares e atrações conhecidas mundialmente, não é de hoje que o Rio seduz cineastas de todo o planeta. Em 1946, o inglês Alfred Hitchcock trouxe Cary Grant e Ingrid Bergman para caçar nazistas em Copacabana em Interlúdio (1946). Em 007 contra o Foguete da Morte, de 1979, Roger Moore enfrentou o terrível Dentes de Aço no bondinho do Pão de Açúcar. Há duas semanas, os astros Robert Pattinson e Kristen Stewart vieram filmar Amanhecer, parte da popularíssima saga inspirada no livro da americana Stephenie Meyer, sobre uma turma de vampiros adolescentes. Os jovens astros e seus entourages dividiram as dependências do Copacabana Palace com a turma do ator Vin Diesel, estrela da série Velozes e Furiosos, que também esteve no Rio, filmando o quinto episódio. Em ambos os casos são blockbusters globais com acordos de parceria com produtoras locais. No ano passado, o Rio abrigou 88 filmagens estrangeiras — em 2010, até setembro, foram sessenta. Não raro, essas empreitadas se tornam oportunidade de ouro para quem começa a engatinhar no setor. “Ainda nem me formei e já fiz parte de uma equipe americana que veio filmar aqui”, comemora Luiz Eduardo de Biaso, aluno do 7º período do curso de cinema da UFF. Ele atuou como assistente do clipe do rapper Lil Jon, gravado em maio, na quadra da Mangueira. Antes, Biaso havia estagiado na Conspiração, na qual acompanhou as filmagens de comerciais para TV.

Photo12/AFP
Um espião nos trópicos
Nem mesmo 007 resistiu aos encantos do Rio. Em 1979, o ator Roger Moore rodou aqui a incrível sequência de uma briga no teto do bondinho do Pão de Açúcar



Além de servir como locação, a cidade concentra alguns dos mais importantes prêmios e festivais brasileiros. Ter um trabalho aclamado em um deles funciona como uma espécie de chancela para o mercado — seja nacional, seja internacional. A dupla André Rangel, 30 anos, e Marcos Negrão, 35, passou por essa experiência. O curta Urubus Têm Asas, que retrata uma comunidade de catadores de caranguejos da Baía de Guanabara, foi escolhido pelo júri popular como o melhor do Festival do Rio em 2008. O prêmio serviu de alavanca para uma série de festivais internacionais, nos quais o trabalho abocanhou mais sete troféus. Era o empurrão que faltava para que os amigos se dedicassem exclusivamente a suas criações. André, que fez comunicação na UFRJ, deixou o trabalho num estúdio de finalização, e Marcos, formado em comércio exterior, abandonou o cargo de executivo numa multinacional. “No início, todo mundo achava que eu estava fazendo uma loucura”, lembra Marcos. O primeiro longa da dupla, o documentário A Terra da Lua Partida, rodado no Himalaia, mostra uma tribo nômade sofrendo os efeitos do aquecimento global e começa a chamar atenção. Foi o único representante brasileiro selecionado para a mostra competitiva do Festival de Amsterdã, que acontece na próxima semana. Depois de um longo período de esquecimento, nossas produções voltaram a brilhar com força aqui e lá fora. E o Rio, a capital nacional do cinema, tem muito a ganhar com isso — agora, felizmente, sem imagens tremidas, com a câmera no tripé.

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